1 de Junho: Muitas crianças à espera de um futuro mais risonho

A célebre frase, segundo a qual “à criança, tudo o que ela merece”, parece não ter muita ligação com a vida de Nelson, um menino de 11 anos, que tem nas ruas da cidade de Luanda, onde estende as mãos a pedir esmolas, a única fonte de sustento diário.  Com um grupo de outros meninos, o garoto passa o dia nas principais avenidas do município de Luanda. Quando há ali dificuldades de conseguir alguma ajuda de automobilistas ou peões, sempre que as forças o permitem, corre para as proximidades de centros comerciais ou de parques de estacionamento.  

Nesses locais, o menino monta uma estratégia: Senta-se junto à porta ou num espaço em que quem sai da loja ou vá em direcção às viaturas parqueadas o vejam… com as mãos estendidas a apelar à ajuda. “Tio, me dá só qualquer coisa para comprar pão”. É com essa mensagem e sentado de pernas cruzadas que ele busca medir a sensibilidade das pessoas. Muitas vezes, Nelson consegue alguns trocados ou o pão que tanto pede. Mas, noutras, volta sem nada para enganar o estômago.  De tronco nu, calções pretos e chinelas brancas, mais a ganhar uma tonalidade acastanhada, dada a sujidade dos calçados, nos poucos minutos que responde a perguntas do jornalista, o menino explica apenas que está na rua para fugir aos maus-tratos do marido da tia com quem vivia em Viana.  

Sobre os pais, deixou transparecer que não os conheceu, uma vez que andam sob cuidados da irmã da mãe, desde os primeiros meses de vida. “A tia era mais ou menos boa, mas ela não me acudia quando o marido dela me batia”, tenta justificar a sua saída de casa para as ruas, onde mora, há quatro anos. Ainda tentámos saber o que faz com o dinheiro que consegue das esmolas, além da alimentação. Nelson confessou que, às vezes, compra roupas, calçados e um “manda onda”, ou melhor, gasolina ou outra substância para suportar os dias duros na rua. A educação primária e formação profissional é um dos 11 Compromissos com a Criança, adoptados pelo Governo, em 2007. Porém, Nelson, desde que fez a segunda classe nunca mais voltou a estudar, mas a criança assegura que tem o  registo, com o qual lhe tinham feito a matrícula escolar num colégio privado.  

Nelson, apesar de viver na rua, diz ter esperanças de que amanhã “o sol irá brilhar” para si e seus amigos. “Ainda sou ‘kandengue’. Minha vida vai mudar, meu kota. Vou ter bwê de sapatilhas dessas”, fala naquele sorriso lindo de menino, enquanto aponta para os calçados do repórter.  Por isso, o garoto, que diz ter pouca família em Luanda, tem fé que, um dia, as ruas vão ficar para trás. E, assim, dar o seu contributo para o engrandecimento do país. Até lá, Nelson e centenas de crianças de e na rua continuam dependentes da mendicidade.  E essa problemática de um número considerável de crianças de e na rua, de menores abandonados pelos progenitores e de vítimas de todo o tipo de violência é uma das situações que preocupa bastante o Instituto Nacional da Criança (INAC). 

Para a instituição, afecta ao Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mu-lher (Masfamu), o fenómeno “Criança na rua” tem várias motivações, sobretudo as ligadas à violência, pobreza nas famílias e à desestruturação familiar.   Apesar disso, o director-geral do INAC, Paulo Kalesi, considera estável a situação das crianças em Angola, tendo em conta que, pelo menos, 85 por cento da população infantil encontrar-se protegida no seio familiar, estar na escola e num ambiente de estabilidade e bem-estar.  

Violação no seio familiar é alarmante  

Quantos aos principais problemas que afectam a criança em Angola, o responsável do INAC avança que um dos maiores está relacionado com a violação dos direitos, sobretudo no seio familiar.  Além desse problema, o director-geral cita, ainda, a existência de crianças nas ruas, na mendicidade (muitas orientadas pelos pais e encarregados de educação), violadas e violentadas e àquelas instrumentalizadas para o cometimento de actos tipificados como crime.  Para inverter os problemas que a criança angolana vive, Paulo Kalesi salienta a execução de uma série de políticas previstas nos 11 Compromissos com a Criança, que têm a ver, além da Educação Primária; com a Esperança de Vida ao Nascer; Segurança Alimentar e Nutricional; Registo de Nascimento; Educação da Primeira Infância; Justiça Juvenil;   Prevenção, Tratamento, Apoio e Redução do Impacto do VIH/Sida nas Famílias e Crianças.  Esses 11 compromissos estão, ainda, ligados à Prevenção e Combate à Violência Contra a Criança; Protecção Social e Competências Familiares; A Criança e a Comunicação Social, a Cultura e o Desporto e A Criança no Plano Nacional e no Orçamento Geral do Estado.  Uma outra política, na visão de Paulo Kalesi tem a ver com o necessário empoderamento das famílias, da existência de mais salas de aula, da mudança de mentalidade por parte dos adultos que pautam pela violência como mecanismo de educação da criança.  


Os grandes desafios

Numa mensagem sobre o 1 de Junho, Dia Internacional da Criança, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) consideram que a data deve servir para que a sociedade reflicta sobre a situação do menor e os desafios para a plena realização dos seus direitos.  A agência das Nações Unidas lamenta que, actualmente, a família esteja bastante fragilizada e limitada na resposta às necessidades da criança, quer pela perda de valores, quer pelo agudizar da situação social e económica.  

Para além disso, o UNICEF, segundo seu representante em Angola, Ivan Yerovi, algumas vezes é na família onde se verificam várias formas de violação dos direitos da criança, como a violência sexual ou a negligência.  O diplomata salientou que os reforços das competências familiares e da protecção social como indicado nos 11 Compromissos com a Criança, em particular o ponto nono, é um caminho para assegurar o empoderamento das famílias quanto ao seu papel na protecção das crianças, especificamente nos primeiros anos de vida, quando o cérebro se desenvolve a uma velocidade surpreendente de mais de um milhão de novas conexões a cada segundo. 

Neste aspecto, o UNICEF reconhece com satisfação o esforço feito pelo Executivo, no sentido de fortalecer o sistema de protecção social, com a implementação de programas de transferências monetárias que são acompanhados do reforço de outros serviços sociais, como é o caso, por exemplo, dos programas “Kwenda” e “Valor Criança”, actualmente em fase piloto, mas que, após uma avaliação e com um maior investimento, certamente, poderão ser expandidos para outras regiões e beneficiar mais famílias.  “A ocorrência da pandemia da Covid-19 e outras emergências têm sido um autêntico teste para as famílias e os Estados e têm criado inúmeros desafios na materialização dos direitos da criança”, diz Ivan Yerovi. Para o representante do UNICEF, à medida que se avançam neste segundo ano da pandemia, pais e responsáveis de crianças continuam a lutar para manter as crianças a aprender e as suas famílias a funcionar, muitas vezes sob o agravamento da pobreza.

Capital e Leste lideram gravidez precoce 

A capital do país, Luanda, além de liderar os casos de fuga à paternidade, que são muito altos, é, igualmente, a região que tem mais registos de gravidezes na adolescência, juntamente com Lunda-Sul e Moxico. Para o fenómeno de crianças acusadas de feitiçaria, o director-geral do INAC salientou que se verifica uma redução acentuada de casos. Por exemplo, durante o ano 2020, em todo o país, o número não ultrapassou os 60, sendo que nenhuma menor foi morta nem submetida a actos desumanos.  Para as crianças que cometem crimes, Paulo Kalesi considera o Julgado de Menores um órgão extremamente importante para a administração da Justiça dos pequenos. No entanto, lamenta o facto de as medidas previstas na Lei 9/96, Lei do Julgado de Menores, não têm sido implementadas na íntegra.  “Essa situação é verificada, sobretudo, para crianças menores de 16 anos que, por exemplo, cometem homicídio”, diz para avançar que não existe um Centro de Reeducação de Crianças em todo o país, apesar de reconhecer o esforço feito nesse sentido.

Abuso sexual e educação familiar

A má nutrição e as doenças diarreicas agudas são outros males que enfermam as crianças angolanas. Mas, a fuga à paternidade, os casamentos e gravidezes precoces, também, constituem preocupação para as autoridades, como salienta Santa Ernesto, directora nacional para as políticas familiares, igualdade e equidade do género do Masfamu. 

Sobre o abuso sexual, dados do INAC referem que a instituição notificou, durante 2020, mais de cinco mil casos de denúncias e, nos primeiros três meses deste ano, cerca de 500 denúncias referentes a crianças abusadas sexualmente.  Quanto ao conjunto de violações contra a criança, Santa Ernesto refere que os dados do Masfamu apontam para 18.320 denúncias, registadas no primeiro trimestre de 2021, sendo que 16.545 foram feitas por via telefónica.  

Para dar conta da gravidade da situação, a directora do Masfamu avança que só ao nível do Centro de Aconselhamento Familiar de Luanda foram registados 336 denúncias, com maior incidência sobre casos de abandono do lar e a não prestação de alimentos.  A responsável diz que existe já a elaboração de uma estratégia de prevenção de casamentos e gravidezes na adolescência, documento que se encontra em fase de recolha de dados.  

Santa Ernesto salienta que há a necessidade da educação e sensibilização das famílias, para que se melhore as formas de combater nesses núcleos os abusos sexuais, casamentos, gravidezes precoces e outro tipo de violência.  Da parte do Estado, adianta que o Código da Família está a ser revisto, por causa, também, da questão da idade núbil. “Nalgumas áreas do país, o casamento precoce é parte da cultura. E isso tem de ser, às vezes, acautelado”. 

Fonte: JA

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