“Eu sou negro. Não somos todos iguais.” Quem é o republicano que deixou este recado a Joe Biden?

“Se tiver a oportunidade, [Joe Biden] será o coveiro da grandeza da América.” O Presidente dos EUA, Donald Trump, encerrou deste modo a Convenção Nacional Republicana, que decorreu entre segunda e quinta-feira sob o signo do ‘nós contra eles’, com algumas (ainda que poucas) excepções. Contra o que prevêem os regulamentos, Trump usou a Casa Branca para fins puramente políticos e de campanha eleitoral, demonizando quem pode comprometer a sua reeleição a 3 de novembro: o candidato democrata. Não foi, aliás, o único a fazê-lo.

Para a colunista e escritora Farrah Alexander, a convenção foi “um reflexo exacto da Administração Trump, repleta de charlatões que mentem ao povo americano”. “O nepotismo esteve em grande destaque: muitos dos oradores são membros da família de Trump, o que é, no mínimo, estranho em democracia”, avalia ao Expresso. De facto, além da primeira-dama, Melania Trump, falou toda a prol adulta do Presidente: Ivanka, Donald Jr., Eric e Tiffany. Todos eles adoptaram um tom laudatório relativamente a Trump e afiado nos ataques a Biden.

A encerrar a convenção, o Presidente em exercício declarou que as presidenciais serão uma escolha entre “o sonho americano”, que a sua Administração protagonizaria, e “um programa socialista destruidor do precioso destino” do país, que seria liderado pelo rival democrata. “Biden não é o salvador da alma da América, é o destruidor de empregos da América”, sublinhou Trump. “Se o Partido Democrata quer ficar do lado dos anarquistas, agitadores, desordeiros, saqueadores e dos que incendeiam bandeiras, isso é problema deles, mas eu, como Presidente, recuso-me [a fazer isso]”, acrescentou, discursando na Casa Branca.

No exterior, decorria uma manifestação anti-racista e contra a brutalidade policial depois de, no último domingo, o afro-americano Jacob Blake ter sido alvejado pelo menos sete vezes por um agente branco em Kenosha, no estado do Wisconsin. As manifestações na sequência do episódio envolvendo Blake, que se encontra paralisado da cintura para baixo, têm sido maioritariamente pacíficas, mas numa delas duas pessoas morreram alvejadas por um ‘vigilante’ de 17 anos, que foi entretanto detido.

Foi neste contexto que na terça-feira discursou o procurador-geral do Kentucky, Daniel Cameron, o primeiro negro a assumir o cargo naquele estado. Ao contrário de muitos republicanos que anseiam por um futuro depois de Trump abandonar funções, Cameron marcou presença na convenção. E não foi o único não caucasiano a fazê-lo: acompanharam-no Nikki Haley, de ascendência indiana e antiga embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, e Tim Scott, senador negro da Carolina do Sul. Mas Cameron fê-lo com mais elegância, dando uma no cravo sem necessariamente dar outra na ferradura.

Apesar das sondagens, que colocam Trump entre 8 a 10% atrás de Biden, Cameron arriscou colar-se ao Presidente em exercício e, no final, apelou inequivocamente ao voto neste para um segundo mandato. Contudo, nos seis minutos e meio que durou a sua intervenção, também ensaiou uma equidistância entre Trump e o resto da história do Partido Republicano. Abraham Lincoln, Dwight D. Eisenhower e Ronald Reagan foram descritos como “heróis que sempre impulsionaram uma nação imperfeita”. Não é assim que Trump costuma descrever os EUA.

DECISÃO “ARRISCADA” E REVELADORA DE “UM POLÍTICO AMBICIOSO”

E se Trump ameaça com 10 anos de prisão os manifestantes que derrubem estátuas dos confederados, Cameron, também apontando o dedo aos “anarquistas que ameaçam o modo de vida americano”, rapidamente opta por um tom mais apaziguador. “Os republicanos não virarão as costas a atos injustos mas também não aceitarão um completo assalto à civilização ocidental”, garantiu. “Apesar das nossas diferenças, todos queremos o mesmo para os nossos filhos, que eles tenham mais oportunidades do que nós tivemos e que sintam a dignidade do trabalho”, sintetizou, antes de lançar o apelo: “Se seguirem estas regras, poderão assegurar uma boa vida para vocês e para a vossa família.”

Quando fez mira a Biden, alguns dos seus ataques pareceram ser potencialmente mais eficazes do que os de Trump, escreveu o jornal “The Washington Post”. O ataque mais dramático foi em resposta a uma declaração de que o candidato democrata e antigo vice-presidente de Barack Obama já se retratou. Biden disse, no decurso do atual ciclo eleitoral, que quem é negro e está a considerar votar em Trump… não é negro. “Senhor vice-presidente, olhe para mim. Eu sou negro. Não somos todos iguais. Não estou acorrentado. A minha mente pertence-me. E não pode dizer-me como votar por causa da cor da minha pele”, atirou Cameron.

“Não há sabedoria no histórico ou no plano [de Biden], apenas um rasto de ideias desacreditadas e declarações ofensivas”, sentenciou ainda. E após os ataques ao candidato democrata, o procurador-geral do Kentucky tentou juntar os cacos de uma nação partida: “As muitas caras deste país constituem uma família, não partes separadas e divididas umas contra as outras.” Na sua análise ao discurso de Cameron, o “Post” refere que a escolha para falar na convenção republicana é “arriscada” e reveladora de “um político obviamente ambicioso”.

A decisão comporta óbvios riscos, que serão tanto maiores quanto mais fragmentado sair o Partido Republicano de uma eventual derrota de Trump. Num cenário em que os republicanos repudiem veemente e maciçamente a era Trump (muitos já o estão a fazer), Cameron poderá ter hipotecado as suas ambições políticas, pelo menos nos curto e médio prazos. Se os republicanos saírem de uma derrota divididos mas não partidos, o procurador-geral poderá emergir como um construtor de pontes. No caso de o Presidente ser reconduzido, Cameron terá o caminho totalmente desimpedido para voos mais altos.

A colunista e escritora ouvida pelo Expresso não se deixou convencer pelo discurso do procurador-geral. Cameron foi, para Farrah Alexander, mais um dos “mentirosos da convenção que tentaram convencer o povo americano de que o desastre em curso não é culpa de Trump e que se deve apoiar mais quatro anos de incompetência e caos”. Para o bem e para o mal, aqueles seis minutos e meio deverão continuar a ressoar na mente não apenas dos republicanos, mas dos americanos em geral.

Texto: Expresso
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