Rosinha Samba: “Também sou sobrevivente da guerra”

Guerreira é a palavra que serve para definir Rosinha Muila Sambo, angolana com uma vivência cosmopolita. Há uma década ela trocou os ares da Noruega, depois de ter vivido na Suécia,pelos da Caála, na província do Huambo, levando consigo o seu saxofone. Amante do Blues, porque carrega a espiritualidade do homem africano, a artista que também declama e assina como Filha da Fuba Pala-Pala, tem uma história de vida com condimentos para roteiro de cinema

A música faz parte do seu ADN. É bisneta do naturalista e um dos pioneiros da música angolana Luís Gomes Sambo, distinto homem com sangue nobre da realeza Cabinda, que nasceu na Ganda, em Benguela, e foisepultado no cemitério da Camunda, na mesma província. É facto que apesar de alguns Sambo terem nascido no centro-sul do país, a ascendência cabindaneles “fala” mais alto.
Encontramos Rosinha Muila Sambo um dia depois da celebração do centenário do pai, José Ambrósio Sambo, no último 5 de Março. Oseu aspecto jovial e os “dreadlocks” disfarçavam os seus mais de meio século de vida. Ela fez questão que a nossa conversa acontecesse numa unidade hoteleira no meio do Rangel. E a narrativa da sua vida, pela sua própria voz, foi se desenrolando naturalmente.
“Eu gosto do Rangel e deste espaço. Aqui as pessoas são puras. Antes eu ficava noutros espaços, mas depois de descobrir o Capirica, esta passou a ser a minha casa em Luanda e o Rangel o meu bairro.”
Mas atenção: ela nasceu nas Ingombotas, bem defronte à sede do Governo de Luanda. A sua infância foi vivida entre Luanda e a Caála. A música entrou “sem licença” na sua vida. “O pai tinha uma banda e tocava em vários pontos de Angola”, relembra.
A música não era apenas o único meio que o pai usava para curar almas. O tratamento com ervas era a outra forma encontrada por ele para curar corpos e mentes.
Ainda é miúda quando os irmãos Xenofonte Pedro, Luís Gomes e Eduardo Sambo são introduzidos na arte da execução da guitarra e da bateria. Incentivados pelo pai, que herdou do avô o gosto pela música,criaram o conjunto de música moderna “A Nave”, formação que na altura teve um forte impacto.
Rosinha Sambo afirma que o ambiente musical dos irmãos não se resumia à chamada música moderna. O Maxinde era outro espaço frequentado pela família. O pai esteve na inauguração deste importante espaço de divulgação das manifestações culturais nacionais. Foi nesta casa que Rosinha ganhou o gosto pelo palco, para onde subiu aos 4 anos, pela primeira vez, para cantar“Atirei o pau ao gato”…

Ano trágico

O ano de 1974 foi trágico para Rosinha: perdeu os pais e um irmão num acidente de viação. Os irmãos Luís Sambo, 21 anos na altura, era estudante de medicina, e Eduardo Sambo, 17, tiveram que assumir o cuidado das duas irmãs mais novas, Rosinha e Manuela.
Nem mesmo a circunstância triste os afastou da música. Na época o ambiente em casa era frenético, com estudantes de medicina e de direito, dentre outros jovens da urbe luandense, a marcar presença nas festas de aniversário, debates e outras aventuras próprias da idade. Com nostalgia e satisfação, Rosinha Sambo sente-se feliz porque muitos desses jovens hoje são cidadãos honrados e têm responsabilidades nas várias áreas do país. Rosinha faz um à parte paraSilito, o jornalista Victor Silva, actual PCA da Edições Novembro.
Com o passar do tempo, os irmãos procuraram afastá-la dos meios musicais, mas às escondidas ela tirava o instrumento que viria a ser a sua grande paixão, o saxofone, e saía por aí a tocar. Nos anos 1980 conhece,por intermédio de Eduardo Sambo, intimamente conhecido por Mano Baby,os integrantes do Afra Sound Star e, nesta formação musical, passa a interpretar sucessos de Alcione como “Cajueiro Velho” e, em determinados momentos, chega a ser bailarina: Rosinha Muila Sambo é a Deysi dos Afra Sound Star, que chegou a actuar em palcos como o do cine Karl Marx, em Luanda, e em eventos da comunidade cubana.
Rosinha Sambo recorda-se bem dos momentos difíceis que o país então atravessava.Com a guerra civil, os irmãos foram destacados em vários pontos do país. O lado bom que guarda daquela época é que pôde conhecer outros ares, nomeadamente a terra do Clã Sambo (Cabinda), Huambo, Moxico e outras localidades, numa demanda que se constituiu numa verdadeira descoberta do país real.
Como muitos jovens da sua geração, faz uma aventura pelo exterior país. Depois dos habituais países preferenciais dos angolanos, opta por viver na Suécia, primeiro, onde faz uma formação musical em Vergen. Por fim, vai viver para a Noruega, reencontrandolá o equilíbrio para apostar forte na música. Foram mais de duas décadas fora da pátria, com regressos para curtas férias.

Memória da guerra

Rosinha Sambo quando vinha aopaís nas tais curtas férias era envolvida pelo ambiente da guerra. Mas não só quando vinha ao país.
“Vocês não sabem o mal que a guerra provocava para quem estava fora do país. Nós também sofremos e fomos tão vítimas dela como quem esteve aqui. Também somos órfãos da guerra e isto transformou-me numa sobrevivente da guerra”.
O clima ficou meio triste, mas pela primeira vez ela pegou no seu saxofone e soltou umas notas, marcando o regresso da alegria. “Na Noruega tocava em vários eventos com bandas, essencialmente, de Blues, mas também Jazz e outros estilos”. Reconhece que o amigo nigeriano Big Sunny abriu-lheas portas para um outro público, ligado ao meio das lutas de boxe, onde com o seu saxofone tocava melodias da música moderna nigeriana,em particular, e africana em geral. Confidenciou-nos que de Abril a Junho próximos deixa o país para honrar compromissos de actuação no exterior.

 Viver na Caála

Farta de viver em solo estrangeiro, optou pelo regresso definitivo a Angola e escolheu, para viver, a terra que sempre esteve no seu imaginário: Caála, na província do Huambo. Longe dos grandes centros urbanos e dos ambientes mais cosmopolitas e superficiais, voltou a apaixonar-se pela hospitalidade e sinceridade do meio rural.
A sensibilidade artística ensinou-a a valorizar os afectos que resultam do convívio no ambiente bucólico.“Lá não há um mero ‘bom dia’, as pessoas saúdam umas às outras com emoção, param. É difícil de descrever, mas quem lá vive sente o real significado da saudação”.
Na Caála Rosinha Sambo recupera a fazenda onde o pai preparava as ervas medicinais. Diz que há 10 anos, com o apoio do seu conselheiro, o Soba Jeremias, e amigos da comunidade local, está a reerguer a Fazenda Oviwemba Sambo. A palavra Oviwemba, significa medicamento, não deu apenas o nome à fazenda, mas também ao anfiteatro que está na fase de conclusão, o Oviwemba Sambo Teatro, que servirá a comunidade oferecendo-lhe atractivos culturais.
Rosinha além de fazendeira já se fez notar na Caála como artista: no final do ano passado foi convidada pelas autoridades locais para uma recepção, onde apresentou vários temas do seu reportório. E ela reitera que o Oviwemba Sambo Teatro é mesmo uma prioridade. “Depois da minha digressão europeia finalizarei este projecto, que tem sido uma das principais razões da minha vida”, afirma ela, que em maré de confidências faz uma outra revelação: um dos seus sonhos é ser sepultada, quando morrer, no cemitério da Cangola, no bairro Mangombota, onde está situada a fazenda.

“No Rangel eu sinto música”

Mas, como dissemos acima, a conversa com Rosinha Sambo decorreu bem longe da amada Caála, a cidade onde a rua principal tem como monumento uma maçaroca. É no Rangel, em Luanda, onde estamos a conversar. A nosssa interlocutora faz um paralelismo entre as duas localidades.
“Eu na Caála acordo com os sons dos pássaros, dos bois e outros sons puros da natureza. Aqui, de modo diferente, também tenho sons puros: o grito das zungueiras e os barulhosda vizinhança a acordar são diferentes dos de outras zonas da cidade. Aqui sinto música”.
Um outro aspecto que foi determinante para a escolha do Rangel é a coabitação entre uma casa de madeira, tipo de construção antiga que marca muitos musseques de Luanda,e o novo edifício da Pousada Capirica. Rosinha reconhece que esta imagem dos musseques no passado a ajudou a manter-se viva e com esperança.
“Quero ser fotografada com este cenário. Esta casa de madeira lembra-me a da minha avó, Helena Sambo, também conhecida como Helena Homem, que no Marçal recebia jovens como o Bonga, o José Barcelô de Carvalho, afilhado do meu pai de crisma e seu chará, José”.
A senhora que adora soprar Blues no seu saxofone falou também das suas grandes referências musicais internacionais: Manu Dibango, Francó, John Coltraine e Louis Armstrong. No país, além dos clássicos do antigamente, gosta muito do trabalho de Sanguito. E como “sangue puxa sangue” tem admiração pela veia musical dos irmãos Xenofonte, Luís e Eduardo. E destaca o pai como sendo o músico mais importante da sua vidaartística.
Não é por acaso que no seu reportório a primeira música é “Saudades da Terra do Enclave”, uma composição que o pai, José Ambrósio Sambo, fez para o avôLuís Gomes Sambo, depois de receber o telegrama dando conta da morte do homem. Este tema foi retomado pela sobrinha, Clélia Sambo, filha do irmão Eduardo Sambo, numa obra discográfica.Outros temas são “Filha de Alguém”, feito na Noruega e que tem uma carga autobiográfica. Tem ainda “Shaka Shaka”, tema mexido e engraçado, uma homenagem ao prato cabindense saca-folha.
A “Dança do Petroleiro”, feito na praia de Fútila, é outro tema que ela faz questão de recordar. Dentre outros sons, está sente-se entusiasmada por ter composto“Canto da Zungueira”,que é reflexo da vivência no Rangel.
Sendo a família importante na sua vida, ela fala com com orgulho e emoçãoda trajectória que os filhos têm trilhado: Kali Sambo évocalista da Opus Big Bang, uma formação norueguesa que tem excursionado pela Europa e Remi Sambo, além de tocar piano, ensina a tocar este instrumento com base na sua formação clássica.
Um outro momento de ligação familiar, mas carregado de tristeza, aconteceu durante a conversa,quando, por acaso, foi cantado um trecho da canção da Clélia Sambo que fala de um episódio familiar e da sobrinha Beatriz, que faleceu há dois anos.No final, Rosinha Sambo reiterou a vontade de participar activamente no desenvolvimento do país.

Analtino Santos /Jornal de Angola

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