Vera Daves de Sousa: “Passamos a viver dentro das nossas possibilidades”

Sra. Ministra, o OGE Revisto começa a ser discutido amanhã, entretanto pelo segundo ano consecutivo o Orçamento é revisto. A que se deve, falhas de programação?

Penso que é importante que todos entendamos o processo de programação orçamental. O Orçamento começa a ser elaborado no mês de Maio. E em Maio de 2019, o preço médio do Brent, nos mercados internacionais, era de aproximadamente 71 dólares por barril. Como sabemos, o preço do petróleo é a principal âncora orçamental e cambial do país. Ainda assim, assumimos um preço de referência de 55 dólares por barril. Na altura, a crítica era que estávamos a ser muito conservadores. Entretanto surgiu a pandemia da COVID, que afectou as economias internacionais com mais relevo em Março de 2020. Ninguém programou o impacto desta Pandemia, que levou o preço do crude (WTI) a valores negativos – algo nunca antes visto na história. Portanto, nós projectamos sempre de forma responsável e conservadora, mas tendo em conta que estamos numa economia global, os factores que afectam a economia global, afectam Angola. Esta exposição vai diminuir quando Angola produzir localmente as suas necessidades de consumo.

Acha que se não fossem estes dois factos, que são absolutamente indesmentíveis e estão aí, a queda do preço do barril de petróleo e o fenómeno pandémico, o Orçamento antes era suficientemente consistente, isto é, não teria havido necessidade de fazer esta revisão? Era um orçamento capaz de enfrentar 2020, em situações normais?

Nós tínhamos consciência, à partida, que 2020 seria um ano que teria os seus desafios e por causa disso é que adoptamos uma postura bastante conservadora no preço do petróleo que definimos à partida no Orçamento. Estávamos também conscientes de fragilidades que tínhamos, relacionadas, por exemplo, à taxa de câmbio, que nos toca também, porque temos parte do serviço da dívida exposto à variação da taxa de câmbio, e isso pode fazer com que tenhamos menos capacidade de tratar de todas as outras despesas. Por estes motivos, dizia, fomos muito moderados na nossa programação.

Então o que é que o OGE 2020 Revisto traz de novo?

Introduzimos o pragmatismo e o realismo, pois temos de viver dentro das nossas possibilidades, para evitar onerar ainda mais o contribuinte. Não é fácil este exercício numa Nação como a nossa, em que há tantos desafios para fazer face, do ponto de vista social, do ponto de vista de incentivos económicos, do ponto de vista de infra-estruturas, mas temos de, cada vez mais, encontrar soluções e modelos em que tenhamos a participação activa do sector privado, e o Estado possa viver de acordo com as suas possibilidades, até porque o stock da dívida está em níveis que exigem cautela e algum cuidado, por conseguinte, o exercício de pragmatismo e realismo assume uma importância cada vez maior.

Senhora Ministra, eu ia pedir para traduzir pragmatismo e realismo em medidas concretas, porque é também agora disto que temos que falar, temos que falar dos impactos directos na vida das pessoas, das famílias e das empresas. Gostaria que me traduzisse, de facto, pragmatismo e realismo em medidas.

Pragmatismo e realismo é identificarmos projectos no Orçamento, cuja fonte de financiamento não oscile em função da nossa capacidade de arrecadação de receitas, projectos de investimento público. Esses projectos foram efectivamente identificados e constam do Orçamento. Houve muitos cortes na carteira de investimentos públicos para aqueles projectos que não têm associado nenhuma linha de financiamento externo, nem interno, e nem dos fundos que resultaram da descapitalização do Fundo Soberano. Todos os projectos cuja fonte de financiamento eram recursos ordinários do Tesouro foram cortados da carteira, de modo que pragmatismo e realismo é isso: é o que vamos conseguir efectivamente fazer com os recursos que já estão mobilizados e identificados e vamos nos focar nisso e assegurar que sejam bem feitos.

Houve uma redefinição de prioridades…

Exactamente!

E nesta redefinição o que é que ficou exactamente de fora, por exemplo, como é que se vai criar mais emprego?

O tema da geração de emprego não pode ser visto numa perspectiva de ser apenas o Estado a criar emprego. Tem de ser visto na perspectiva de se saber e avaliar muito bem quais os projectos de investimentos públicos e que programas o Estado tem que vão ser catalisadores da criação de emprego – e é sobre isso que importa comentar. Sobre a questão de projectos em específico, temos vários projectos que envolvem o sector da energia ou ainda da construção, integrados, por exemplo, no Programa de Intervenção nos Municípios, e aí acreditamos que pode haver significativa criação de emprego.

Emprego precário, Senhora Ministra, que dura o tempo das obras…

Não necessariamente. Nós olhamos para o sector da construção como o processo de construir. Desde a pedreira, serralharia e carpintaria até aos serviços de manutenção após o término das obras, são criadas um conjunto de indústrias e competências que podem ser utilizados para outros fins. Este é o grande valor agregado do investimento público, daí estarmos a promover uma nova visão, uma visão que promova o investimento público de forma integrada e não apenas na execução de uma determinada obra. Por outro lado, o fomento do emprego é claramente por via do sector privado. Daí que, no âmbito do programa de privatizações, já estejamos a ver surgirem empregos, com um conjunto de fábricas que estavam paralisadas e agora vão começar a funcionar e gerar novos empregos. No âmbito do programa que está a ser desenhado pelo Ministério da Economia e Planeamento, que envolve o financiamento do FADA, via agricultura familiar, vão ser criados empregos. Pela via do Programa de Apoio ao Crédito, em que existem iniciativas que precisam de liquidez para serem dinamizadas, vão ser criados empregos, porque estas iniciativas vão ganhar outra dimensão.

Está a falar da linha de crédito do BDA, por exemplo?

Sim e de bancos comerciais que, ao abrigo do aviso que o BNA publicou, têm de emprestar dinheiro a uma taxa mais baixa. De modo que, o Estado, sozinho, não vai conseguir criar os empregos de que se precisa e vai precisar destes parceiros e com eles agir em concertação. O que o Estado tem de fazer – e estamos a fazer – é remover os obstáculos do caminho – os mais antigos e os mais recentes – e investir tudo o que é possível nas infra-estruturas necessárias para que esta máquina opere. Se olharmos para o papel do Estado e do privado de forma integrada, veremos que o investimento público fomentará cadeias de valor, que prevemos serem financiadas por via das iniciativas atrás apresentadas. Este é o caminho para fomentar a produção nacional, não temos outra escolha. Foi por isso também que recapitalizamos o Fundo de Garantia de Crédito. Há um ambiente de promoção do investimento privado e cabe aos empresários capitalizar estas ferramentas.

Mas a realidade é que nós tivemos no primeiro semestre deste ano a economia ou suspensa, ou semiparalisada, e nisso tivemos custos, as pessoas sentiram isso. Em termos reais o que é que o Governo fez para minimizar, no dia-a-dia, os custos de pessoas que tiveram de ficar em casa, que não tinham condições para fazer teletrabalho e os seus rendimentos diminuíram?

Foi preparado um programa com medidas de alívio económico que foi apresentado e aprovado em Conselho de Ministros e já está em implementação. Algumas medidas estavam relacionadas com as empresas e outras relacionadas com as famílias. O programa ou as medidas, naturalmente foram dimensionadas à capacidade do Estado de apoiar. Para as famílias flexibilizou-se, por exemplo, o pagamento das contas de energia e água e flexibilizou-se na questão do limite máximo que as escolas poderiam cobrar propinas. No caso das empresas, flexibilizou-se dando-lhes mais tempo para o cumprimento das suas obrigações fiscais e no sentido de não se lhes cobrar IVA até um ano, relativamente à importação de matérias primas, sendo que terão até um ano para cumprir com estas obrigações em sede do IVA.

São medidas concretas o trabalho que temos vindo a fazer no âmbito da reforma do Estado, no sentido do emagrecimento do aparelho do Estado, entre outras medidas que foram levadas a cabo. Gostaríamos de ter feito mais, sim, mas temos de fazer mediante a nossa capacidade e porque sabemos bem que o próprio Estado também enfrenta dificuldades.

“Precisamos de superavits consecutivos

para reduzirmos o stock da dívida”

Voltando aos temas macroeconómicos e de finanças públicas, Senhora Ministra, está previsto um crescimento negativo, como é que o Estado pensa equilibrar as contas públicas? Gostava de a ouvir também em relação ao tema da sustentabilidade da dívida pública, porque há notícias de acordos com credores no sentido de serem pedidas moratórias ou mesmo perdões de dívida. Qual é exactamente a fotografia?

O tema do crescimento negativo naturalmente que nos preocupa. A questão do crescimento económico é estrutural e estamos a tomar medidas para melhorar o ambiente de negócios, fomentando a produção nacional. Isto demorará o seu tempo e temos acompanhado, com muito agrado, a reacção das pessoas e empresas. Vê-se, hoje em dia, um claro dinamismo na produção nacional, que pretendemos apoiar na sua aceleração, quer por via da redução dos custos fiscais dos insumos, no financiamento da aquisição pelo Estado de produtos nacionais e, mais importante, alocando recursos públicos para iniciativas que fomentem o sector privado. Contudo, ao Ministério das Finanças compete também equilibrar as contas públicas e temo-lo feito com medidas de fomento da receita e redução da despesa. Parte do pacote de redução de despesas, está em negociação com os principais credores e temos sido muito bem-sucedidos.

Qual é o valor e como se comportará o PIB?

O PIB andará em menos 3, 6 por cento, o que, primeiro, destrói valor e adia a trajectória do crescimento; em segundo, compromete a geração de empregos que gostaríamos de ter. Preocupa-nos sobremaneira… e depois porque deixamos de ter receita fiscal, de que precisamos e muito, para poder ter um orçamento superavitário.

Qual é a perda em termos de receita fiscal?

Estamos a falar de 30 por cento de perda de receita, comparativamente ao orçamento em vigor. Isto naturalmente tem um preço e o preço é termos este ano um défice fiscal. Tivemos em 2018 um superavit, tivemos em 2019 um superavit e em 2020, muito provavelmente, com todos os pressupostos que temos em cima da mesa, teremos um défice. Não é uma situação que nos agrade, porque entendemos que precisamos de superavits consecutivos para podermos reduzir o stock da dívida, mas também entendemos que há um conjunto de despesas que não são negociáveis. A nossa capacidade de cortar despesas tem limites, então teremos que recorrer a financiamento. O que resultar de receitas patrimoniais e o que conseguirmos encaixar com o programa de privatizações vai ajudar a cobrir o gap, e ainda assim teremos que recorrer a financiamento.

Por isso é que é muito importante sermos focados e pragmáticos para assegurar que com esta despesa consigamos provocar as mudanças positivas necessárias para inverter o quadro, em termos de redução de dependência do sector petrolífero e em termos de ter mais sectores a gerar valor, porque se com este cenário das finanças públicas não gastarmos nos projectos certos, teremos no próximo ano uma degradação ainda maior das contas públicas e é isso que queremos evitar; por isso é muito importante o foco e é muito importante fazermos as escolhas certas neste momento.

Quais são as medidas que não são negociáveis e o que é fazer uma boa gestão daquilo que é gasto, exactamente falamos de quê?

Na verdade as duas perguntas estão relacionadas. Relativamente à sustentabilidade da dívida, nós estamos a interagir directamente com os nossos credores. Nós aderimos à iniciativa de suspensão da dívida do G20 e estamos no processo negocial e de formalização desta adesão.

Qual é o valor?

Ainda não temos quantificado o valor, porque ainda não está formalizada a adesão, mas já manifestamos o interesse. Estamos no processo de apurar os benefícios que teremos e também estamos a negociar com os nossos credores, seja do ponto de vista multilateral seja bilateral…

Falamos concretamente da China?

(risos) Não adianta por ora fazer esta destrinça. Dou-lhe apenas nota duma grande abertura e estamos a trabalhar. Este cenário de crise tornou-se uma oportunidade do ponto de vista da gestão e sustentabilidade da dívida pública, o que nos permite gerar poupanças significativas.

Mas a informação é pública, todos nós sabemos quais são os maiores credores do país, portanto…

Temos acordos de confidencialidade que não nos permitem nesta altura dar este detalhe, mas estamos em processo avançado para conseguir poupanças e folga para levar a cabo um conjunto de outras despesas que temos de tratar.

Relativamente à questão das despesas que não são negociáveis, uma está relacionada com os funcionários públicos, que ainda têm um peso grande naquela que é a nossa rubrica de despesas. As despesas com o pessoal têm um peso significativo e não podemos falhar relativamente ao pagamento de salários.

Outra despesa não negociável é o serviço da dívida. O Estado tem de continuar a manter a sua reputação e não pode falhar em honrar os seus compromissos. E o que estamos a fazer no âmbito destas negociações e destes acordos é procurar diminuir a factura, mas também é uma despesa que não podemos falhar.

Na fase actual, mas também numa abordagem estruturada para o longo prazo, é inegociável o investimento em saúde e educação.

Temos neste momento uma dívida em cerca de 123 por cento do PIB…

É a perspectiva até ao final do ano, sim. Em grande medida devido à deterioração da posição cambial, porque quando observamos os números em dólares vamos notar uma redução. Por exemplo: O stock da dívida era de USD 82 mil milhões de dólares em 2017. No final de 2019 era sensivelmente de USD 72 mil milhões e prevemos atingir um valor inferior a USD 66 mil milhões de dólares no final de 2020. Portanto, estamos a falar essencialmente de uma reavaliação cambial.

Senhora Ministra não nos consegue dizer hoje quanto é que nós vamos encaixar? Isto é, independentemente do Orçamento que hoje temos e que se pode traduzir em receita, quanto é que nós podemos encaixar com estas negociações da dívida?

Bom, o que é certo é que este processo não vai fazer reduzir o stock da dívida, o que vai fazer é dar-nos espaço para respirar durante algum tempo, porque vai nos permitir pagar de forma mais suave ou deixar de pagar durante algum tempo, isso só para início de abordagem no que a este assunto diz respeito. O que significa que devemos persistir no caminho da consolidação fiscal.

Relativamente ao alívio que é esperado, nós estamos a contar obter poupanças significativas nos próximos anos.

Qual é o ponto de situação em relação à regularização dos atrasados, apesar de nos últimos dias termos visto notícias de regularização junto de credores na Huíla e em Benguela, ainda assim persistem notícias de empresas que estão em dificuldades e tal como dizia há bocado, por ausência mesmo de liquidez.

Nós relativamente aos atrasados temos o tema do passado e o tema do presente. O tema do passado está relacionado com os atrasados que se foram formando nos últimos anos, uns de acordo com as regras de execução orçamental e outros desrespeitando as regras de execução orçamental. Relativamente àqueles que foram constituídos respeitando as regras de execução orçamental, todos foram liquidados até 30 de Março.

Isto corresponde a que período, ano de corte?

De 2013 a 2018.

Relativamente aos que estão fora do sistema, aí já é um desafio maior, por não terem respeitado as regras de execução orçamental, há um processo de certificação associado. Passado este processo, ainda vai depender da nossa disponibilidade de tesouraria e de espaço fiscal para emitir títulos ou compensar fiscalmente a empresa com dívidas. É uma das três soluções que normalmente usamos para regularizar, ou pagamos com dinheiro, ou emitimos títulos para pagar, ou faz-se a compensação fiscal das dívidas fiscais desta empresa com a dívida que o Estado tem para com ela. De modo que, relativamente a este caso, ultrapassado o obstáculo da certificação que tem os seus desafios, porque muitas das vezes o novo gestor não se sente confortável para reconhecer a dívida do gestor anterior, e fica-se num impasse, mas ultrapassando este obstáculo temos agora a limitação de tesouraria, porque não temos tesouraria suficiente para tratar dos atrasados na dimensão e velocidade que gostaríamos, estamos a gerir o presente e temos o desafio do espaço fiscal, porque não podemos emitir muitos títulos uma vez que o nosso nível de endividamento está muito alto. Enquanto se mantiver este cenário mais aflitivo, a máquina de regularização será mais lenta, mas não está paralisada.

Mas há um limite estabelecido pelo FMI?…

Temos um plafond, sim, de 150 mil milhões de kwanzas, para pagar atrasados e já consumimos cerca de 80 por cento deste montante e só estamos em Julho, de modo que é um desafio, naturalmente que vamos continuar a negociar no âmbito do programa para ampliar o tecto máximo.

Somos um país de contas certas ou continua a pairar indisciplina orçamental?

Estamos a percorrer este caminho e por isso temos levado insistentemente a mensagem a todos os gestores do erário de disciplina e rigor na gestão da despesa. Parcimónia, realismo e pragmatismo. Fazer muito e bem com o pouco que temos. Esta situação actual impôs-nos muitas restrições, mas é um desafio e ao mesmo tempo uma oportunidade para aprofundarmos as reformas que ainda temos pela frente, no sentido de consolidar as contas públicas e adoptarmos um modelo de economia de mercado mais assente e onde o sector privado consiga exercer um papel vital.

Fonte: Jornal de Angoola
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